“Ele tinha grande experiência com médicos e dizia que “o único jeito de ter saúde é comer o que não quer, beber o que não gosta e fazer o que detesta!”
(Dicas Úteis para uma Vida Fútil, de Mark Twain)
Em um sábado qualquer, topei com Dicas Úteis para uma Vida Fútil – Um Manual para a Maldita Raça Humana, de Mark Twain (1835-1910). Pois o livreiro que organizou (ou bagunçou) as prateleiras da loja naquele dia acertou. Percorri os olhos por algumas páginas e comprei. E foi um dos melhores investimentos que fiz nos últimos tempos.
O livro só é novo para quem, como eu, nunca tinha visto. Publicado há alguns anos pelo selo Relume Dumará, é desses para se jogar no sofá e ler de uma vez, se o tempo permitir. Dando risada.
Mark Twain é o pseudônimo de Samuel Clemens, que foi um dos mais importantes escritores norte-americanos do século 19. Um ícone de bom humor, inteligência e caneta (acho que pena é o termo mais adequado). Todos afiados. O homem que gostava de usar ternos brancos foi também autor de romances como As Aventuras de Huckleberry Finn.
Dicas Úteis é um livro cheio de opiniões sobre as coisas da vida. Qualquer coisa. Viagem, educação das crianças… Estilo.
“A roupa faz o homem. Povos que andam nus têm pouca ou nenhuma influência na sociedade”, dizia Twain no aforismo colado ao capítulo que trata de moda — e dá para notar na foto da capa que ele é todo jeitoso para se vestir.
Naquele tempo sem internet e mensagens em tempo real, os temas do momento eram construídos assim, por pensadores como Twain que saíam pelo mundo atrás de histórias ou as encontravam na sala de almoço de casa, no quintal ou no banheiro enquanto faziam a barba. Em um monte de textos e cartas pessoais e trechos de romances, o autor saca do cotidiano situações banais, como a conversa de duas mulheres ao telefone (“por que, afinal, elas falam tão alto?”), e nelas injeta uma baita dose de humor e ironia. São raciocínios inspirados e conclusões sobre tudo.
O recado é: levar a vida muito a sério só desgasta além do inevitável. Então, divirta-se um bom tanto.
Mas o que isso tem a ver com comida, vida à mesa ou ao redor dela? O capítulo 3, A Mesa Americana, tem tudo a ver. E o capítulo 5, Saúde e Alimentação, também tem.
Um pouco antes de alcançar o relato sobre um “jantar inesquecível”, leio que em 1878 a família Clemens viajou para a Europa, porque Mark Twain estava fazendo pesquisa de campo para escrever Um Mendigo no Estrangeiro, que seria publicado dali uns dois anos. A mulher e as crianças acompanharam o autor em seis meses de expedição “e compras”.
No trecho de Comida Americana Versus Comida Européia, ele compara os cafés da manhã nos dois continentes:
“O tipo mais comum e mais simples de café da manhã do americano médio consiste de café e bife, mas na Europa o café é uma bebida desconhecida. Você pode conseguir o que o dono do café europeu acha que é café, tão parecido com o autêntico quanto hipocrisia parece com santidade. É uma coisa fraca, sem gosto e sem graça, quase imbebível, como se tivesse sido preparada num hotel americano. O leite usado para acompanhar o café é o que os franceses chamam de leite “cristão”, ou seja, foi batizado com água”
(…)
“E vem o bife. Na Europa há bife, mas não sabem como cozinhá-lo. Tampouco como cortá-lo. O bife vem à mesa no meio de um pequeno prato de estanho redondo, cercado de batatas imersas em gordura (…). É um pouco passado demais, seco e tem gosto de nada.
Imagine um pobre exilado contemplando essa coisa inerte e um anjo de repente chega de uma terra melhor e coloca à frente dele um poderoso assado de cervejaria, de cinco centimetros de altura, crepitando na assadeira, temperado com perfumada pimenta em pó e acrescido de pedacinhos de manteiga derretidos, bem fresca e autêntica. Os preciosos sucos da carne escorrem e entram no molho, que é rodeado por um arquipélago de cogumelos; um ou dois pedaços de tenra e amarela gordura formam um distrito nesse abundante condado de bife (…)”
Segue uma lista de comidas que Mark Twain sugere a todo norte-americano carregar consigo em viagem à Europa, por questão de sobrevivência diante da “insípida” comida local. E conclui: “Suponho que os estrangeiros não apreciam a nossa comida mais do que nós a deles. Não é de estranhar, pois o paladar se forma, não se nasce com ele.”
Lembrei da minha irmã que acaba de voltar de uma dessas viagens com crianças aos Estados Unidos e seus parques temáticos. Exceto quando conseguiam escapar da rotina de férias para comer em um restaurante brasileiro ou cozinhar na casa alugada, foram dias de malabarismos para se adaptar a refeições gordas e cafés da manhã untuosos. A tal ponto que minha sobrinha, de um ano e meio e paladar em formação, um belo dia acorda e pede: “mãe, quero arroz”. É, senhor Mark Twain, há comidas e comidas.
Fico imaginando se o senhor apreciaria nossa média com pão na chapa, deliciosamente apressadinha, logo de manhã. E se gostaria de saborear um café fresquinho, escoltado por bolo caseirinho de laranja, enquanto percorre as páginas do livro. Como estou fazendo agora, rindo das suas fanfarronas narrativas e imaginando o que vem por aí neste fim de semana. E o que vou almoçar. E jantar.
Autor: Viviane Zandonadi
Muito legal. Nunca tinha ouvido falar também, mas é um daqueles que você pega sem querer na livraria por causa do bom título.
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