segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Açafrão: ouro em pó

Mais valorizado que a trufa, o açafrão tem sua colheita resumida a apenas duas semanas entre os meses de outubro e novembro


Por esses dias de outubro uma tradição milenar e imutável se repete nos campos que vão da Mancha, na Espanha, à Kuzeih, próximo ao rio Youngaline, na Birmânia. Empenhada em questionar a lógica das coisas, quando o resto do mundo vegetal se prepara para enfrentar os rigores do inverno (no hemisfério Norte), desabrocha a Crocus sativus, a flor do açafrão, formando um lindo tapete lilás que fará a loucura dos gastrônomos.


Renovada a força da natureza, tudo precisa ser feito com dedicação, exigindo uma mão de obra bem qualificada. A colheita, já que as flores medem aproximadamente vinte centímetros, é manual. Como floresce por apenas duas semanas, a apanha tem de ser feita rapidamente.


O processo seguinte, também artesanal, é tirar os pistilos, conjunto de órgãos femininos das flores. Mulheres, geralmente organizadas em estruturas familiares, arrancam, com rápidos movimentos, usando o polegar e o indicador, os três pequenos pistilos de cada flor. É tarefa minuciosa, da qual depende a qualidade final e a “pureza” do produto.


Na seqüência, o produto é secado delicadamente, em fogo brando. Toda essa cuidadosa tarefa de produção é extraordinária, calculam-se necessárias cerca de 150 mil flores e 400 horas de trabalho para cada quilo de açafrão obtido. Como o comércio mundial movimenta milhares de quilos, é gigantesco o número de flores e o empenho humano para atendê-lo.


Pelo mundo


Cultivado no Irã, no Marrocos e na maioria dos países mediterrâneos — com destaque para a Grécia e a Itália — tradicionalmente o melhor açafrão é encontrado na Espanha. Respondendo, com seus 35 mil quilos anuais, por 70% da produção mundial, os espanhóis, justificadamente, são orgulhosos do seu maravilhoso e valorizado açafrão de Castela.


Entre a imensa variedade de especiarias, o açafrão é das mais finas. Sua magia singular, sensual e vibrante, transfere aos alimentos aroma único, sabor especial (com uma pontinha de amargor) e uma cor de manto real. Cultivado na Ásia desde a Antiguidade, acompanhou os conquistadores árabes, que o trouxeram, há mais de mil anos, em sua marcha rumo Oeste, para a Espanha. A raiz etimológica da palavra é reveladora: za’fran, do árabe, significa “amarelo”.


Pela história


Em tábuas sumerianas do período de Ur (3000 a.C.) encontramos o açafrão na lista de alimentos da casa real. Na Mesopotâmia, vários documentos indicam seu uso como condimento no período de reinado de Hamurabi (1800 a.C.). Papiros egípcios do século 19 a.C. mencionam os jardins de Luxor cobertos por essas flores, as mesmas que decoram um célebre afresco, de 1700 a.C., do palácio de Minos, em Creta. Ele é mencionado na Ilíada e no Cântico dos cânticos (4,14).


Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), conquistador de grandes territórios orientais, foi fascinado pelo gosto das especiarias, sobretudo dos pistilos avermelhados. Romanos de alta classe tomavam uma infusão de açafrão, tido como afrodisíaco, para se entregarem às artes de Vênus. O livro de cozinha de Apicius contém várias referências a ele. Na Idade Média, quando grande valor era dado ao aspecto estético de uma refeição — pois a mesa posta devia, além de alegrar a vista, exibir riqueza e poder —, os pratos de carne podiam ser “dourados”, cobertos com um reluzente preparado amarelo feito à base de açafrão.


Não existe açafrão barato, portanto deve-se suspeitar de qualquer pechincha
No tempo de Marco Polo o açafrão chegou a valer mais do que o ouro. Seguiu atravessando a história como a mais cara das especiarias, o mais valioso produto alimentício do planeta, bem mais caro do que a baunilha ou o cardamomo, valendo 20 vezes mais do que a trufa.


No Brasil podemos encontrar bom açafrão, geralmente do Marrocos, pagando em média R$ 5 o grama. Produto superior, o espanhol, pode ser achado por um preço que varia de 8 a 15 euros o grama.
Não existe açafrão barato, portanto deve-se suspeitar de qualquer pechincha. Produto de distinção, ele desperta a vocação dos fraudadores, apesar das drásticas regulamentações.



O preço elevado precisa ser pensado de acordo com sua vigorosa dimensão culinária: poucos gramas bastam para servir bem uma família numerosa, ao longo de um ano inteiro. Dois pistilos desse ardente sol portátil são suficientes para dar vibração e destacar receitas com os carotenóides e óleos essenciais do seu misterioso aroma, poder colorante e sabor incomparável.


Na panela


Três receitas emblemáticas da latinidade estão ancoradas nele: na Espanha a paella; na Provence a bouillabasse e, em Milão, o risotto alla milanese. Todas essas maravilhas teriam um aspecto bastante pálido se fossem confeccionadas sem essa ajuda pungente e marcante. Mesmo na Suécia, antítese do Mediterrâneo, no dia de Santa Lúcia, festa da luz celebrada em 13 de dezembro — data prestigiosa de entrega dos prêmios Nobel —, simbólicos pãezinhos especiais são confeccionados com açafrão.


Tire a prova, use um bom e fresco açafrão (colhido há não mais de um ano), de cor laranja-vivo e perfume forte. Se ele é uma maravilha no licor (Chartreuse) ou arroz, imagine em molhos, cozidos, pastas.


Davi Goldman é pesquisador da cultura e história da gastronomia e coordenador do curso Alta Gastronomia, na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP)

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